SOBRE A CULPA
”Somos todos culpados de
tudo e de todos perante todos, e eu, mais do que os outros”, diz Dostoiévski em
Os Irmãos Karamazov. Senso de responsabilidade pelo outro maior não há. No polo
oposto está Nietzsche que,em tom provocativo diz que o livre-arbítrio é uma quimera
e uma invenção do cristianismo para nos culpar, mas, na verdade, “somos todos
inocentes”. São duas posições extremas e, como tais, necessitam de um meio
termo virtuoso, como diria Aristóteles. Ou devidas distinções.
Emmanuel Levinas, filósofo francês
nascido na Lituânia, quando perguntado sobre como se começa a pensar, magistralmente
responde dizendo que o pensamento começa lá onde há algum desconforto, um
trauma, uma separação, uma violência e, porque não, na leitura de um livro,
filosófico ou de literatura, que choca e transforma em questão o que no
cotidiano aparece como banal. Além, é claro, do mito e do símbolo que são
fontes inesgotáveis do pensamento.
Marx e Hegel amavam a
contradição como motor da ação e do pensamento. Kierkegaard, por sua vez,
preferia os paradoxos.
Nas frases de Dostoiévski e
de Nietzsche, encontramos, parece, a representação das várias perspectivas, afinal,
um é literato e outro é filósofo em posições de contradição paradoxal. A
contradição e o paradoxo agitam o pensamento e dão o que pensar.
Nesses casos a quem recorrer
para pacificar o pensamento buscando um meio termo de ouro? Não adianta
recorrer a livros de autoajuda e ao senso comum. Essas duas opções buscam
refúgio no simples, para não ter que enfrentar o complexo. Complexo, cuidado,
não significa complicado ou insolúvel, significa apenas “aquilo que é tecido em
conjunto”, isto é, o que se junta para formar o todo. O todo, contudo, pode
confundir, se não passar pelas devidas distinções.
Se o que estamos procurando
é alguém que seja uma boa companhia para fazer as devidas distinções do
conceito culpa, esse alguém se chama Karl Jaspers. Em seu primoroso livro A
questão da culpa: a Alemanha e o nazismo, Jaspers ajuda a pensar a Alemanha
após o nazismo, mas em nosso caso as suas distinções lançam luzes sobre como
resolver as posições antitéticas de Dostoiévski e Nietzsche sobre a culpa. Em
suas mãos o que, aparentemente tem um sentido único, tem, na verdade, quatro
sentidos ou dimensões: criminal, política, moral, metafísica.
É preciso saber de que culpa
estamos falando para que, ao fim e ao cabo, se possa dissolver a contradição,
aparentemente, insolúvel.
Culpa criminal nem todos têm,
só a possui os que cometem delitos comprovadamente objetivos e tipificados em
lei. A instância de julgamento é o tribunal que, um processo formal, obedecendo
os fatos, aplica as leis.
Culpa política é a culpa que
cada cidadão carrega pelos atos cometidos pelos seus governantes com
consequências desastrosas para o conjunto da sociedade ou para a parcela mais
frágil. O voto não é inocente e se pelo voto se destrói a democracia por
dentro, culpado é também quem votou na personalidade autoritária, por exemplo.
E não adianta se desculpar, acusando o outro lado para se apresentar como
inocente. Quem julga e pune um ato de consequências políticas comprometedoras
da história de um povo? Quem julga e pune é o tribunal implacável da história.
Ou, em alguns casos, o vencedor!
Culpa moral é a culpa
individual, cuja instância de julgamento e punição é o tribunal da consciência
que avalia a intenção e consequências de atos de acordo ou contrários aos
valores e normas morais internalizadas e assumidas como tal. A culpa moral é
aquele sentimento de mal estar que dilacera a alma do transgressor, mesmo que o
ato cometido não seja testemunhado por ninguém. Na culpa moral o eu, na sua
mais desolada solidão, é a um só tempo, acusador, juiz e punidor.
Culpa metafísica é, por sua
vez, a culpa resultante do excesso de mal no mundo que conta com a participação
e responsabilidade de cada um, direta ou indireta, por ação ou omissão diante
das injustiças e violações de direitos humanos, agressões à natureza e
violência e morte aos animais, por exemplo. Tudo está conectado e o que afeta o
outro afeta ao eu. Esse senso de responsabilidade não permite que alguém durma
tranquilo e em paz com sua consciência. A vida de qualquer ser humano, da
natureza e dos animais nos importam e, se isso é verdadeiro, quem não se sente
culpado bom sujeito não é. Assim, quem se diz “do bem” é, na verdade, cínico ou
mal informado.
Com essas distinções
conceituais Jaspers pretende pensar a Alemanha no pós nazismo e os traumas
ocasionados na sociedade que não deveria ser responsabilizada indistintamente.
A distinção conceitual é a cortesia do filósofo quando este quer ser claro e
ajudar a pensar. Sem as devidas distinções culpabiliza-se no atacado, pondo no
mesmo patamar realidades de grandezas diferentes.
Assim, pode-se concluir que,
talvez, Dostoiévski estivesse pensando em culpa metafísica e Nietzsche em culpa
moral. Ambos são exagerados. Há inocentes e há culpados. Nem todos são
inocentes, nem todos são culpados e eu não estou acima dos outros.
Comentários