O LABOR, O TRABALHO, A AÇÃO E O ESPÍRITO
“Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe.
Portanto, só existimos quando fazemos Nos dias em que não fazemos, apenas
duramos”. Desde que a pandemia se instalou, essa frase do Pe. Antônio Vieira
não me sai da cabeça. Ela me acompanha como uma sombra e fica cutucando meu
cérebro!
Dizem que as heresias são uma verdade extremada e essa
frase parece uma heresia. Ele está mais para Goethe do que para a Bíblia,
aparentemente. A Bíblia, magistralmente sintetizada pelo evangelista João, diz
que “no princípio era a palavra” ao que Goethe contrapõe com a máxima: “no
princípio era a ação”. Talvez a forma sutil de salvar a todos, inclusive o padre
seja dizer que palavra é ação e a ação é palavra. Afinal, como dizia Heidegger,
“o círculo é a festa do pensamento”.
São falhas todas as tentativas de dizer quem somos
quando essas tentativas reduzem o complexo ao simples, o todo à parte, o
círculo ao ponto no centro do círculo. Reduzir o ser ao fazer parece simplismo,
não? A não ser que no verbo “fazer” caiba tudo, inclusive rezar, cantar, ler,
passear, contemplar...!
Para lançar luz sobre o problema, Hannah Arendt parece
ser uma boa companhia, se o que procuramos for o humano na sua integralidade.
Na sua perspectiva, o humano pode ser pensado em quatro dimensões ou estágios: labor,
trabalho, ação e espírito. Mesmo que a dignidade humana só seja alcançada na vida
ativa e do espírito, os outros estágios não são descartáveis, se quisermos
pensar o todo.
Por labor Arendt entende o humano no seu esforço de
manutenção e reprodução da vida. O labor é o outro nome para vida nua, como
diria Agamben, uma vida biológica, sem biografia e desprovida de direitos. O labor
é o conjunto das rotinas biológicas empreendidas para não deixarmos de ser. O labor
é o esforço de duração e de sobrevivência. Pelo labor nos igualamos à vida
vegetal e animal que se esmeram em ser e continuar sendo, durando.
O trabalho, por sua vez, é o esforço humano que incide
sobre a natureza, transformando-a e colocando-a a nosso favor através de mecanismos
de produção de ferramentas e serviços facilitadores da vida. Essa dimensão da
vida humana é o que se convencionou chamar de homo faber.
A ação, diferentemente do labor e do trabalho, não
incide sobre a matéria, sobre a natureza e não visa a sobrevivência, mas a vida
ativa criadora de espaços de habitação favoráveis na vida pública mediante a
palavra e o discurso na ordem do político. Pela ação o humano se individualiza
e escreve sua história, sua vida, sua bio-grafia e, de alguma forma, se
sobressai à da espécie que permanece no limite da reprodução e mecanismos de
manutenção da vida privada e social dada pelo labor e pelo trabalho. É pela ação
que o indivíduo demarca a irrepetibilidade e dignidade intransferíveis. É pela ação
que o humano se faz humano. Parafraseando Simone de Beauvoir daria para dizer
que “não nascemos humanos, tornamo-nos humanos pela ação”. A vida ativa nos
eleva e nos empresta uma dignidade que o labor e o trabalho por si só não
alcançam.
A vida do espírito, por sua vez, é do âmbito do querer,
do julgar e do pensar. Esse âmbito nos tira da banalidade e nos eleva para o
alto, mais para os anjos ou demônios, do que para animais. É pela moral, pela
literatura, arte, filosofia, religião e pela vida contemplativa que o sentido
da vida se apresenta para além do ato de viver e sobreviver simplesmente. É
claro, a corrupção do melhor redunda no pior e, por isso, a possibilidade do
diabólico e do mistério da iniquidade, sempre presentes na condição humana,
pertence à condição humana e a esse âmbito da ação e da palavra.
A frase do Pe. Vieira continua perturbando minha cabeça
e me acompanhando como um fantasma. Mas, em boa medida a luz, projetada por Arendt,
dissolve a sombra que paira sobre o verbo fazer, tirando-o de um sentido
meramente instrumental e elevando-o para uma atividade discursiva, ativa e
espiritual. Se o sentido do fazer alcançar o estágio do trabalho, da ação e do
espírito, então, sim, o dia em que nada “fazemos” nessas três dimensões, apenas
duramos.
Não é nada emocionante apenas durar. Aliás, é puro
tédio. Por isso, pequenos trabalhos manuais, caminhadas, exercícios físicos,
conversas, leituras, orações, meditações, jogos, algumas postagens nas redes
sociais a favor da democracia e contra as personalidades autoritárias e,
sobretudo, cozinhar, cuidar do jardim e semear rúculas é o que pode, pelo menos
para os aposentados ou sem trabalho formal, nos salvar em tempos de pandemia.
Comentários