DESOBEDIÊNCIA MORAL, INTELECTUAL E RELIGIOSA
“Numerosas são as maravilhas da
natureza, mas, de todas, a maior é o Homem’, diz Sófocles em Antígona. Nessa mesma peça trágica de
Sófocles, se lê que “ninguém é louco a ponto de desejar a morte”. Esta última
frase é proferida pelo Rei Creonte que alimenta a convicção de que suas ordens
serão obedecidas e desobedecê-las serio o mesmo que desejar morrer. Na peça,
Antígona desobedece ao Rei que proíbe sepultura de seu irmão Polinices, por
este ter lutado contra o seu governo na tentativa de derrubá-lo. Antígona
desobedece a lei do Rei invocando uma lei mais alta, a lei divina e da tradição,
que garantem o sagrado culto aos mortos e suas devidas cerimônias de despedida
e de sepultamento.
Sófocles não conhecia o Brasil, por
suposto. Se conhecesse, talvez, refizesse tanto a frase de que somos a quintessência
da criação e das maravilhas, a maior, quanto a de que “ninguém é louco a ponto
de desejar a morte”. Que alguns desejam a morte dos outros, ou nada façam para
impedi-la mesmo tendo condições, é por demais sabido e todos os dias há provas
disso, mesmo que, falsa ou cinicamente, digam que se preocupam com a vida quando,
na verdade, priorizam o capital em detrimento da vida. E há os que desejam a
própria morte desafiando a pandemia ou prescrevendo remédios que a medicina não
recomenda. Quanto à ideia de que somos mais maravilhosos do que o conjunto dos
outros animais e mais maravilhosos do que o sol, a lua, as estrelas, rios e
mares, bom, talvez sejamos mesmo, como espécie, mas como indivíduos, sinceramente
eu prefiro o Chico, o Mick e a Preta, de quatro patas.
Mas, o que me interessa mesmo, aqui,
da referida tragédia de Sófocles, é a ideia defendida por Antígona, segundo a
qual, é imperioso desobedecer às ordens das autoridades políticas, sobretudo
quando oriundas de mentecaptos e necrófilos, se essas ordens forem uma afronta
a um princípio ou valor mais alto e mais nobre do que o valor e o princípio que
baseia a ordem. Sejamos claros. É imperioso desobedecer, moral, intelectual e
religiosamente, o inquilino que se instalou no planalto central. A
desobediência deve ser de ponta a ponta, em todas as áreas, seja nas suas
orientações sobre o meio ambiente, educação e cultura e, sobretudo, em relação à
saúde. Um inquilino desastroso, sem compaixão, sem dignidade e sem alma. Urge
despejá-lo enquanto há tempo.
Umberto Eco dizia que os homens nunca
fazem o mal tão completa e entusiasticamente como quando o fazem por convicção
religiosa. Não se iludam, a fachada religiosa do inquilino que ora nos governa
é uma máscara que esconde cadáveres atrás de si. Nunca será demais denunciar e
marcar posição contra o pior que a história já produziu entre nós. Não se opor,
resistir e desobedecer é agir por cumplicidade. O niilismo reativo que tomou
conta da mentalidade conservadora fascista é autodestrutiva e envenena a todos
os que dela se aproximam. O distanciamento moral, intelectual e religioso dos
que estão no poder central é a única forma de imunidade para uma vida saudável.
Mas, o mais trágico nem é isso. O
mais trágico é a morte acompanhada da proibição das sagradas despedidas e
rituais de passagens. Isso sim é de doer o coração e de matar! E o pior, não há
a quem apelar para reclamar que seja diferente. Se reclamar para o Bispo ele
vai pedir para que se vá reclamar ao prefeito ou ao governador. É um destino
trágico. O que faria Antígona nesse caso? Até ela ficaria paralisada. Ou será que ela arriscaria se contaminar e
contaminar outros, mas não abriria mão do último adeus com todas as cerimônias
que qualquer senso antropológico prescreveria ?
“A gloria de Deus é o homem vivo”,
dizia Santo Irineu. Os mortos não louvam a Deus e não dá para louvar a Deus
pelos mortos. E, muito menos, louvar a Deus pelos que matam. Se estivermos de
acordo com isso, quem sabe se possa chegar a um acordo sobre o que seria o
desejo de Deus e nosso, inclusive, quanto o procedimento ritual e litúrgico que
marca a despedida de um ente querido, nesse momento de pandemia. É doloroso e quase insuportável morrer sem adeus? É. Tem outra forma? Tem algum protocolo que se possa seguir com segurança? Se, sim, então é urgente pensá-lo. Se não há, e se o melhor para a vida dos que ficam é o afastamento físico total, então, em nome da vida e do Deus da vida, que se chorem os mortos mesmo sem as devidas despedidas. E, quem sabe, se pense alguma forma de marcar e tornar célebre a vida que se foi, numa cerimônia doméstica, na comunidade de fé e, futuramente, em praça pública. Afinal, sem os devidos rituais de despedida, de que nos diferenciamos dos outros animais?
Desculpe Antígona, mas o teu caso não é o nosso caso. Não há heroísmo nenhum em se arriscar e não há uma lei positiva que possa ser revogada. O que há é um estado da coisa que se impõe, e contra o estado das coisas não há porque desobedecer.
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