SOBRE A CARIDADE





A caridade é uma virtude teologal sem concorrentes à altura tanto na terra quanto nos céus. É a mais alta das virtudes e a prova é de que, no céu, não haverá nem fé e nem esperança, mas sem a caridade, céu não seria. Céu sem amor? Qual seria a graça? No céu, para que a fé e a esperança, se a promessa da felicidade já está realizada?
Mas, não falemos dos céus, falemos da terra. E, na terra, como nos céus, a caridade é o que importa prioritariamente Agora, do que estamos falando, exatamente, quando falamos da caridade?
Conceitualmente, essa é uma pergunta fácil de responder. Caridade é uma virtude teologal e significa amor a Deus e amor aos outros. Os “outros”, nesse caso, são todos e qualquer. Mas, como praticar a caridade com os que não precisam, ou não merecem? Será possível ser caridoso para com os ricos E será possível ser caridoso para com os desafetos? Se a caridade for pensada somente como ajuda externa aos que lhes falta algo material, então, não há como ser caridoso para com os ricos, abastados, ou para com os desafetos. Mas, não será pobre demais pensar a caridade somente nesse aspecto?
Para responder a essa pergunta faz-se necessários dois elementos. Primeiro, pensar a distinção entre as formas de amor e, segundo, pensar a partir de duas figuras emblemáticas do amor como caridade: Jesus e Paulo.
Quando se fala do amor não há como não recordar as suas três formas: amor filia, amor eros e amor ágape. O amor filia é o amor de amizade, o amor eros é o amor paixão, erótico, é o amor entre duas pessoas que envolve desejo, sexo e posse do outro. Se não houvesse posse, não haveria ciúme e o ciúme é próprio do amor erótico ou romântico, tão louvado pelos filósofos e poetas. O amor ágape, por sua vez, é o amor de caridade. É o amor desinteressado e pura entrega oblativa. O amor ágape é a máxima novidade introduzida e praticada por Jesus e pensada por Paulo.
Jesus é o modelo do amor ágape, do amor caridade. Contudo, em Jesus o amor não é pensado como doação de algo, de algum bem próprio para o outro, do qual o outro é carente. Se assim fosse, Jesus raramente teria praticado a caridade. O que transparece em Jesus é que o amor de caridade, antes de doar coisas, é doar-se. A caridade não se reduz ao âmbito do ter, das coisas, dos bens materiais, mas do âmbito do ser. O amor caridade não é dar coisas, mas dar-se a si mesmo No limite, dar a própria vida em favor dos outros, inclusive aos que nem merecem...
Paulo, por sua vez, em consonância com Jesus, pensa a caridade como a reunião de todas as qualidades positivas do coração. Não há definição melhor. Reunião de todas as qualidades do coração voltadas para Deus e para o próximo, eis no que consiste a caridade. E essa posição fica explícita no hino à caridade que transcrevo, integralmente, pois é uma peça literária sem igual:

"Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, isso nada me adiantaria. A caridade é paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se enche de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais passará. Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão. Quanto à ciência, também desparecerá. Pois todo conhecimento é limitado e limitada é a nossa profecia. Mas, quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o que era próprio da criança. Agora, vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido. Agora, portanto, permanecem fé, esperança, caridade, estas três coisas. A maior delas, porém, é a caridade (1Cor, 13, 1-113)".

Nada é superior à prática de Jesus e nada pode ser dito de melhor e mais elevado sobre a caridade, do que Paulo disse. Do que Paulo disse, destaco três ideias-força que me parecem centrais e definitivas para pensar a caridade.
Primeiro, a caridade é uma atitude e um estado de espírito, muito mais do que doação de algo material para os que necessitam. Isso transparece claramente na frase: Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos...isso nada me adiantaria. Aparentemente, quem tomasse tudo o que é seu e entregasse aos famintos, diríamos tratar-se de verdadeira caridade, não todavia, na visão de Paulo. Paulo sabe que a verdadeira caridade não é exterioridade, mas interioridade da alma. E olha que a frase diz algo radical: Ainda que eu distribuísse todos os meus bens...E tem gente que pensa ser caridoso por dar das sobras...
Segundo, podemos imaginar um mundo sem profecias, sem ciência, mas mesmo nesse mundo a caridade não passará. Podemos imaginar o céu em que todas as imperfeições e limites desaparecerão, mas mesmo no céu, a caridade permanecerá. E isto porque a caridade é uma disposição da alma para o bem, nas características que Paulo lhe dá: paciente, prestativa, não invejosa, não orgulhosa, nada faz de inconveniente, “não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Ninguém elevou e louvou tanto a caridade quanto Paulo. Ninguém.
Terceiro, a fé e a esperança são virtudes necessárias para viver, mas para “bem viver” a caridade é a maior. Paulo não despreza a fé e a esperança, mas enaltece a caridade. E com razão. A fé e a esperança são a antessala do face a face com Deus, a caridade, o amor é, contudo, mais do que encontro com Deus no face a face, é o enlace e abraço definitivo com Ele. Assim na terra, como nos céus, a caridade tem a primazia e é sem limites. Afinal, o que pode limitar o amor?
É por essa posição de Paulo que Nietzsche disse que Paulo é o mentor intelectual de todos as instituições de caridade, de todos os programas sociais de inclusão e distribuidor de rendas, de toda rede de solidariedade e voluntariado que o cristianismo fomentou e bravamente, alimentou no atravessar dos séculos.
Hoje, contudo, há uma onda contra o espírito cristão, que louva o individualismo possessivo e o espírito do capitalismo, defendendo, abertamente, que a maior das virtudes é a virtude do egoísmo, como diz Ayn Rand, a filósofa mais lida, nos EUA, depois da Bíblia. É cada vez mais comum desconfiar da caridade e da solidariedade e cada vez mais normalizado o espírito de “primeiro eu”, “primeiro minha família” “primeiro meu país”, “primeiro minha etnia” etc. O que é tudo isso senão o ocaso do espírito cristão e o ocaso da civilização e o retorno às cavernas e à sociedade hobessiana de “todos contra todos”?
Para resistir ao espírito do “eu”, mais Jesus, mais Paulo e menos Ayn Rand e seus “discípulos amados”. Desconfie de Rand e seus discípulos que querem se passar por discípulos de Jesus! Desconfie e não confie!



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