SER E TEMPO



Nada sobrevive ao tempo, implacável com tudo e a todos devora. Ele sempre está no comando e nós somos apenas coadjuvante que entram e saem de cena sem parar. No final e início de ano, o tempo parece nos dar uma chance de tomar as rédeas da história com a sensação de que o passado e o futuro nos pertencem. Na verdade, as datas extremas de final e início de ano são apenas um cochilo ou um fingimento do tempo para nos iludir de que, talvez, tudo dependa de nós. Aproveitar, porém esse cochilo, esse fingimento do tempo e não perder tempo com picuinhas, com coisas pequenas e externas que afetam a nossa vida intelectual, espiritual e familiar-afetiva, é o que se pode fazer de melhor.

Sim, o que importa são essas três dimensões da vida, mesmo que a política tenha se tornado o tema e a pauta dominante nas rodas de conversa e colonizado o mundo da vida. Há um forte perigo de nos desfazermos do essencial em nossas vidas, sobretudo das amizades e dos familiares, por conta do processo traumático do ano eleitoral, mas isso seria uma lástima e um pecado contra o santo espirito da reconciliação e do perdão que o tempo mesmo oferece, generosamente, nas mencionas datas.

Não dá para perder a oportunidade que as festas de final e início de ano nos oferecem para um recomeço, inclusive com quem cortamos e deletamos, sem dó nem piedade, do círculo das relações, presenciais ou virtuais. É uma chance do tempo. Neste caso o tempo não é tanto o tempo Cronos, quanto o tempo da graça e da oportunidade, o tempo Kairos.  O tempo Kairos é como um “cavalo encilhado”, na linguagem gaúcha, que se nos oferece de passagem e, quando passa, ou aproveitamos e montamos nele ou perdemos definitivamente a oportunidade.

O virtual tem sido causa de aproximação, comunicação e interação sem igual. Viver desconectados da internet nos dá sensação de uma vida isolada e de “peixe fora d’água”. Por outro lado, o virtual tem sido meio, causa e motivo de rompimento de relações e tem comprometido os laços tradicionais de pertencimento, sobretudo familiar e espiritual comunitário. Ficamos todos reféns das “bolhas” formatadas pelos algoritmos das redes sociais que tem arrastado a todos para “ilhas de iguais”, fechados para o outro. Porém, esse outro pode ser o pai, a mãe, o filho, a filha, o irmão, o primo, a prima, o tio, a tia...

Não tem sido agradável e tranquilo saber que os parentes pertencem a outra ilha política e ideológica e, se cutucados, podem responder sem a delicadeza que teriam na vida real e cotidiana. No virtual, tem sido um desafio viver uma vida saudável e dentro das normas primárias de civilidade. Todos se acham no direito de afrontar a opinião do outro com outra opinião, às vezes, sem base real e sem o mínimo de consistência, mas, mesmo assim, parecendo uma obrigação manifestar-se. A mediocridade perdeu a modéstia e tem sido duro ver gênios verdadeiros serem afrontados por perfeitos idiotas...

A vida real comporta várias dimensões, mas, na hierarquia das dimensões, antes da dimensão ideológica e política, está o bem viver pessoal, familiar e comunitário no círculo da proximidade sanguínea, física e espiritual. Por sua vez, o corpóreo, no face a face, no aperto de mão, no abraço e no beijo, está num patamar superior na escalada do ser em relação ao virtual.  O virtual, na vida em rede e suas dinâmicas de bolhas, culto ao eu, autoafirmação e militância excludente da alteridade, precisa voltar a ocupar o seu lugar, abaixo e a favor da vida e não acima e contra ela. E a vida, não custa relembrar, não é uma comunidade virtual de amigos e seguidores que curtem e compartilham o mais do mesmo. A vida é comer, beber, dormir, sonhar, lutar, trabalhar, estudar, rezar, amar, descansar, viajar...

Qualquer uma dessas coisas, essenciais à vida, são possíveis sem o virtual e sem as redes sociais. Então, será que não está na hora de repensar o que é fundamental e essencial e o que é secundário e descartável, que nos rouba tempo e um pouco de nosso ser?

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