A GULA
A
gula é o pecado contra a temperança. A temperança é uma virtude. A gula é um
vício. A temperança é a virtude da moderação, da justa medida. A gula é o
destempero, o excesso, a perda total das medidas. A temperança é esbelta, a
gula é obesa. Mas, haverá pecado em fazer o que é natural como saciar a fome no
ato de comer? Jesus não disse, definitivamente, que não é o que entra pela boca
que torna alguém impuro e pecaminoso. Logo, parece que a gula não pode ser
pecado...! Será?
A
fome não tem reinvindicações além da conta, apenas quer ser saciada. Quando
saciada, sossega. A gula, não. A gula é gulosa, insaciável. A fome quando
saciada, feliz está. O triste prazer da gula vive atormentando a alma na ânsia
desesperadora da vontade de comer lá onde já não há fome. A fome é o clamor do
corpo para a manutenção da vida. Não há porque julgar culpada a fome e, muito
menos, a comida e a bebida que a aplacam. Não há pecado na fome, se não for
forçada e provocada pelo pecado da avareza de alguns e não há pecado no ato de
comer para “matar” a fome para que ela não nos mate. Tanto a fome quanto o
comer são naturais e necessários, logo, além do bem e do mal. De onde vem, então,
o pecado?
Tomás
de Aquino, um simpático gordinho que sistematizou os sete pecados capitais,
define a gula assim: “A gula é o apetite desordenado de comer e de beber”. O
apetite é desordenado se for contra a reta razão, diz Aquino e todo excesso é
contra a reta razão e as virtudes. E a gula é excesso. Se não fosse pelo
excesso, teríamos que admitir que haveria pecado no prazer de comer, mas,
convenhamos, não pode haver pecado no prazer. Se o prazer fosse pecado, então,
Deus seria culpado, pois foi ele que muniu o corpo humano com os cinco sentidos
e, dentro destes, o paladar. E é dos sentidos que advém os mais intensos dos
prazeres. Alguns preferem os prazeres artísticos e intelectuais e até os
consideram superiores, mas, só alguns!
Não
há pecado no prazer, só há pecado no excesso.
Mas,
que mal há em comer e beber um pouco além da conta? Vivemos tempos em que a
gastronomia virou uma ciência e a descoberta de uma nova receita contribui mais
para a felicidade dos humanos do que a descoberta de um novo planeta. Então,
não seria apenas um “desmancha prazeres” essa conversa de pecado da gula? Sim e
não. Sobretudo, não. A questão remete, hoje, além da questão moral e teológica,
para problemas de ordem fisiológica e de saúde. E, convenhamos, as duas dimensões,
da saúde e da moral, são reais, sérias e causam estragos.
Do
ponto de vista da saúde do corpo, o “comer além da conta”, provocado pela gula,
é desastroso tanto para a estética e auto estima, sobretudo num tempo da
ditadura do corpo perfeito, sarado e magro, quanto para a saúde. Parece não
haver contestação quanto ao fato que já se morre mais de obesidade do que de
fome. Isso é impressionante! A gula não só causa doenças, como efeito
colateral, mas provoca, também, a morte. A pergunta que se impõe é: é possível
ser guloso por brócolis, por frutas, verduras e legumes? Difícil. E por doces e
carnes? Fácil, muito fácil. Então, a virtude está em conter o desejo diante do,
naturalmente, apetitoso e prazeroso...! Não há virtude em comer verduras e
legumes moderadamente...! Assim, ao que parece, também não há pecado da
“tentação vegetal”. Aí está uma boa razão para os moralistas virarem
vegetarianos...! Moralistas de todo mundo, uni-vos, contra a carne e os
derivados do leite e ovos...! Além de tudo, prestarão um serviço à causa
ecológica...!
Isso
tudo é nobre, contudo, o mais importante, do ponto de vista do pecado capital
da gula, não está na ordem da saúde física, mas na ordem da saúde moral e
espiritual. O pecado da gula não incide só sobre o corpo, mas, sobretudo, sobre
a alma. Se o corpo do guloso fica desmedido, a alma fica atormentada. A alma
atormentada é uma alma sem paz, sem serenidade, em estado de permanente
ansiedade. Uma alma atormentada é uma janela aberta para outros pecados. Se a
gula for de bebida, pode levar a bebedeira e à perda do controle tanto físico
quanto emocional e espiritual. Poderíamos, por hipótese, nos interrogar sobre o
que é menos grave, a bebedeira, o estupro ou matar alguém? Se dissermos que é a
bebedeira, não percamos de vista que um bêbado pode violentar e matar a um só
tempo...!
De
fato, a gula enfraquece, moralmente, o ser humano. Ela leva à preguiça, à
luxúria, à ira e até à inveja do corpo do outro. Aparentemente é um pecado de
segunda categoria, mas, só aparentemente. Ele pode ser um pecado mortal se
desviar do fim último, isto é, se o comer e o beber assumirem o lugar de Deus.
Nesse caso a comida viraria um ídolo e não haveria porque fazer jejum, pois o
jejum seria um pecado contra o ídolo. O guloso venera o próprio ventre como
sendo o próprio Deus. Aí reside a essência desse pecado!
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