MERLÍ E A FILOSOFIA

Para um estudante, ou mesmo para um professor de filosofia, é uma verdadeira graça salvadora e uma inspiração dos deuses, a série para a TV catalã, gravada em Barcelona, sob o título Merlí, disponível no Netflix. Se algo parecido acontecesse na TV brasileira, no lugar das novelas, ou dos programas de auditório, a juventude respiraria, amaria, cantaria, desejaria e pensaria diferentemente e, lhe garanto, muito melhor. Que série magnífica!
A ideia é relativamente simples, mas apresentada de forma sedutora e envolvente. Por falar em sedução, o sedutor por excelência é seu personagem principal, o professor de filosofia Merlí Bergeron, interpretado pelo ator Francesc Orella. Ele é a cara da série e é realmente fora de série. O professor encarna a filosofia de tal forma que não há contradições que encontramos na filosofia que não estejam personificadas nele. Ele é meio cínico meio cético, meio arrogante e irresponsável, meio comprometido com o ofício e meio abusado e, às vezes, despudoradamente iconoclasta, sofista e até anarquista. Cheio de imperfeições e defeitos, mas ao mesmo tempo, um amante e amigo de forma exemplar. O que diz mais e melhor da filosofia do que as palavras “amante e amigo”? Só não é realista e nem idealista, dois extremos chatos no discurso filosófico. Merlí é o que todo professor de filosofia desejaria ser quando crescer. Ele desperta o amor ao conhecimento nos alunos e causa inveja aos colegas professores por suas atitudes e seu método de ensinar que vai do instigador, provocador, crítico e inconformista, ao construtivista socrático e, às vezes, peripatético.
A série se desdobra em três temporadas de 13 episódios cada e um epilogo, somando 40 episódios. Os episódios recebem o nome de filósofos da tradição, clássica ou nem tanto, como é o caso de Hipárquia, mulher do cínico Crates de Tebas e Judih Blutter, filósofa feminista americana, ainda viva. O cerne dos episódios se passa em sala de aula, num instituto de educação secundarista. O professor inicia, sempre, abruptamente a aula escrevendo no quadro o nome do filósofo do dia e, de imediato, expõe a tese síntese do pensamento do referido filósofo, de forma cortante e acertada, sempre na mosca. A mosca, aliás, é o inseto que abre a apresentação gráfica dos episódios e eu interpreto como sendo uma metáfora da objetividade e centralidade: “na mosca”. Eu desejaria ter o poder que o professor Merlí tem de dizer a tese principal do autor e depois passar ao debate em conexão com o “mundo da vida”. Ele faz isso com maestria. Nesse aspecto, a série é um modelo formal inspirador para educadores de todas as áreas, sobretudo, das humanas.
O “mundo da vida” dos amores e temores, uniões e separações, dos dramas pessoais e familiares, dos afetos e desafetos e preconceitos, dos cinismos e hipocrisias, dos egoísmos e filantropias, do feio e do sublime, dos gestos interesseiros e das trapaças e corrupções ao lado de nobres almas e gestos redentores, tudo isso compõe o quadro em perfeita harmonia com o filósofo estudado, passando de um plano acadêmico para o informal de uma forma invejável. A vida extraclasse dos alunos e professores, com pitadas de vida familiar e, inclusive, da vida política e econômica da Espanha, fecha o círculo virtuoso do pensamento que não se pensa a si mesmo, mas que pensa a vida e o ser aí.
Alguns episódios são emblemáticos, como é o caso da forma plástica e aplicada de ensinar o mito da caverna de Platão, a “justa medida” como regra ética de Aristóteles e o imperativo categórico kantiano. Mas falar do conteúdo seria um desmancha prazeres. O prazer maior é assistir e eu tenho inveja de quem ainda não assistiu e pode assistir pela primeira vez. Eu vou rever, mas já não serei o mesmo, e nem a série me parecerá a mesma, tal como nos ensina o Heráclito do “tudo flui”. A vantagem está com o leitor que se aventurar. Depois me conte!

Comentários

Unknown disse…
Excelente série! Recordo do dia que o Sr. me indicou em uma aula ali na Unilasalle enquanto debatíamos sobre alguns assuntos sobre filosofia! Grande abraço mestre.

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