HERÁCLITO: O FILÓSOFO DA DIALÉTICA!
Uma personalidade obscura e cento e vinte e seis fragmentos, é o que a tradição nos legou do mais interessante filósofo grego antes de Sócrates. Sócrates e Jesus nada escreveram, o que prova que a escrita não é critério de sabedoria e de conhecimento. Heráclito escreveu, mas para mostrar como a quantidade nem sempre é fundamental, o que sobrou de seus escritos não excede a cinco páginas.
Cinco páginas de pedaços de texto. Cinco páginas de fragmentos de texto. E mesmo assim, esses fragmentos se tornaram a pedra angular do maior movimento filosófico do ocidente: os dialéticos. Não existiria Platão, Agostinho, Hegel e Marx, sem uma raiz comum e essa raiz é o pensamento dialético iniciado por Heráclito.
Heráclito (540-480 a. C) foi uma dessas figuras que a história só oferece uma vez. Ele era exemplar. Diôgenes Laêrtios, um dos mais antigos historiadores das ideias, nos deixou algumas informações valiosas sobre sua personalidade: a) era mais “altivo” que qualquer outro homem e olhava para todos com “desdém”, vivendo plenamente em estado de melancolia; b) quando os cidadãos de Éfeso lhe pediram para elaborar leis para a cidade, ele se retirou e foi jogar “ossinhos com as crianças”, pois sabia da corrupção dos concidadãos; c) se orgulhava de não ter sido discípulo de ninguém e tudo o que sabia, dizia ser fruto de investigação própria; d) seu tratado “Da Natureza” é tão enigmático e obscuro quanto sua personalidade e ele escreveu de forma obscura e enigmática exatamente para que a facilidade não gerasse desvalor; e) seu desdém era tal que se tornou “misantropo” afastando-se do convívio humano, passando a viver nas montanhas com os animais, alimentando-se de ervas e verduras; f) adoeceu de hidropisia, doença que ocasiona retenção exagerada de líquido no corpo, tendo que voltar para a cidade. Procurou por médicos, mas não lhes informava da sua doença, apenas perguntava se alguém sabia como transformar uma “inundação numa seca”. Como não obteve resposta, ele mesmo se automedicou, cobrindo-se de esterco de boi e expondo-se ao sol, na esperança que o calor fizesse evaporar o líquido do corpo. Dois dias depois estava morto.
Cento e vinte e seis fragmentos é o que sobrou de tudo o que Heráclito escreveu. Se a sua obra era obscura, os pedaços que sobraram são ainda mais obscuros. Mas, cuidado, obscuro não significa falta de clareza. Significa, antes, não simplificação e repetição do senso comum auto evidente. Significa profundidade em dizer o Ser no seu sentido mais originário e essencial.
Heráclito é o tipo de pensador que merece o nome de físico, filósofo e teólogo. Me desculpem os pedagogos, os psicólogos, os engenheiros, os médicos, os biólogos, os cientistas particulares, mas não tem para ninguém. O pensador por excelência, aquele que pensa as questões últimas, isto é, o que é o mundo, quem somos, de onde viemos, qual o sentido da existência, o que é o Ser?, esse pensador responde pelo nome de físico, filósofo e teólogo. E Heráclito era os três ao mesmo tempo.
Dos cento e vinte e seis fragmentos, destaco alguns que me arrebatam a alma cada vez que os releio e que, mais densamente, a meu ver, expressam o que é o mundo, o que é o Ser, o que é o divino e o método para alcançar a sabedoria, compreendida essa, a sabedoria, como saber “a razão que governa todo mundo em toda a parte”. A sabedoria é, pois, o saber da totalidade, detectando o “Logos” que governa todas as coisas.
Cada um dos fragmentos são uma interpretação da realidade, e, agora, para nós, uma realidade a ser interpretada. Cada um desses fragmentos mereceria uma dissertação, contudo, por economia e por método, aposto na sua inteligência, caro leitor, para meditar e absorver a sabedoria neles escondidos. Não faço classificação, apenas seleciono 30, dos 126.
Se a felicidade consistisse nos prazeres do corpo, deveríamos proclamar felizes os bois, quando encontram ervilha para comer.
O Sol é novo todos os dias.
Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia.
Os asnos preferem a palha ao ouro.
Correlações: completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia e desarmonia, e de todas as coisas um, e de um, todas as coisas.
Os porcos alegram-se na lama, mais do que na água limpa.
Homens que não sabem nem escutar nem falar.
Não houvesse a injustiça ignorariam o próprio nome de justiça.
O que aguarda o homem após a morte, não é nem o que esperam e nem o que imaginam.
Este mundo, igual a todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez, sempre foi, e será um fogo eternamente vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medida.
Só uma coisa é sábia: saber o pensamento que governa tudo através de tudo.
O povo deve lutar por sua lei como pelas muralhas.
Não devemos julgar apressadamente as grandes coisas.
Descemos e não descemos nos mesmos rios; somos e não somos.
Eles não compreendem como, separando-se, podem harmonizar-se: harmonia de forças contrárias, como o arco e a lira.
O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá; governo de criança.
A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros, homens; de uns escravos, de outros, homens livres.
A harmonia invisível é mais forte que a visível.
O caminho para baixo e o caminho para cima é um e o mesmo.
Deus é dia e note, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome. Mas toma formas variadas assim como o fogo, quando misturado com essências, toma o nome segundo o perfume de cada uma delas.
O mais belo símio é feio comparado ao homem.
O mais sábio dos homens, comparado a Deus, parecer-se-á a um símio, em sabedoria, beleza e todo o resto.
Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio.
Eu me procurei a mim próprio.
Não seria melhor para os homens, se lhes acontecesse tudo o que desejam.
A doença torna a saúde agradável; o mal, o bem; a fome, a saciedade; a fadiga, o repouso.
O pensamento é comum a todos.
A natureza ama esconder-se.
Mesmo uma bebida se decompõe, se não for agitada.
O frio torna-se quente, o quente frio; úmido seco e o seco úmido.
Se lestes um a um, com cuidado, terás percebido o poder e a força do texto de Heráclito e terás compreendido por que, entre outras coisas, ele é considerado o filósofo do movimento, do devir, da luta, da dialética. Ele é, por excelência, o anti-Parmênides, que dizia que o Ser é sempre o mesmo, que o Ser é o que é e sempre será e, o movimento, apenas ilusão dos sentidos. Na verdade, diz Heráclito, o ser é transformação, contradição, movimento e a identidade fixa é que é ilusória. Ou há uma dialética entre a identidade e a mudança e, portanto, uma dialética entre Parmênides e Heráclito? Falaremos de Parmênides no próximo capítulo, aguarde!
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