SOCRATES E NÓS!


Em tempos de selfie e culto à imagem, Narciso, talvez, seja o personagem mítico que melhor nos cai bem. Narciso, o personagem mítico que se dobra sobre si, fazendo do lago um espelho, cultuando-se até a exaustão e a morte, é o que de melhor podemos pensar como síntese do nosso tempo. Na cultura do espetáculo e da imagem, ser é sinônimo de parecer e aparecer. E no aparecer o parecer ser é mais fundamental do que o próprio ser. A casca é mais importante que o miolo, a exterioridade mais importante que a interioridade, a aparência mais importante que a essência. Ou, o que é pior, já não se distingue um do outro, já não se distingue a imagem da coisa mesma, o ser do parecer ser. É como se a complexidade e os paradoxos ficassem, repentinamente, simples e sem mistério algum.

É num tempo assim que urge encontrar figuras exemplares que nos puxem para fora do círculo da mesmice e da imagem e nos projete para o outro, para o além, para o mistério, para a alteridade. Para essa viagem, Sócrates pode ser uma estação obrigatória de parada, não para fazermos algumas compras de alguma mercadoria ou objeto de satisfação e ostentação, mas para confrontação da alma consigo mesmo, a partir de um espelho colocado nas costas que só pode ser visto no olho do outro, quando no face a face.
De Sócrates já se disse tudo e mais um pouco. É a típica figura, contudo, que sempre se pode acrescentar um ponto, como num conto. Mas, o mais importante é o que permanece e o que é constante e não propriamente a novidade pela novidade. E o que seria o permanente e o constante em Sócrates e que ainda pode mobilizar nossas mentes e nos confrontar como cultura, não como espelhamento, mas como alteridade que nos faz pensar e agir diferentemente?
Arisco um decálogo:
1. Sócrates é o filósofo da oralidade. Não escreveu nenhuma palavra, nem mesmo na areia, como teria feito Jesus. Tudo que sabemos dele vem de Platão, Xenofonte e Aristóteles. Por esse conhecimento indireto dele e por razões da ordem do método e do conteúdo da sua filosofia, tornou-se um dos mais instigantes e enigmáticos filósofos de todos os tempos. Tenho por mim que, se vivesse hoje, sequer usaria facebook e muito menos o twitter para se comunicar...
2. Sócrates teve três filhos e, segundo Diôgenes de Laêrtios, com duas mulheres: Xantipe e Mirtó. De Xantipe há várias informações e o que merece destaque é que era uma mulher durona, forte, que pegava pesado com Sócrates e não engolia muito bem a ideia de ele ficar o dia inteiro rodeado de jovens bonitos, tentando ensinar-lhe filosofia, como Alcebíades, por exemplo. Se vivesse hoje, talvez, fosse bissexual assumido...
3. Sabemos, pela tradição que Sócrates não era belo exteriormente, não alimentava hábitos de se vestir bem e de cuidar do corpo, mas sabia se apresentar arrumado, se precisasse, como foi o caso numa festa promovida pelo poeta Agatón para comemorar a vitória deste num concurso de poesia e que Platão imortalizou no livro “O Banquete”. Nessa ocasião ele tomou banho, calçou sandálias, se arrumou e se perfumou. De qualquer forma o corpo não era a sua praia, ele preferia cultivar a vida espiritual e intelectual. Duvido que faria selfie se vivesse no nosso tempo....
4. Sócrates era um sedutor. Feio, mas sedutor. Seduzia pela beleza do saber. Alcebíades, um grande general Ateniense, é a prova disso, pois ficou seduzido por Sócrates, apesar de Sócrates não estar nem aí para Alcebíades e seu poder do corpo (juventude, beleza, dinheiro, honra e força). Sócrates, se vivesse hoje, creio, não frequentaria academia e sequer tatuagem no corpo faria...
5. Para Sócrates importava a alma. O corpo não passa de um cárcere que aprisiona a alma até a morte, quando finalmente retorna ao lugar donde nunca deveria ter saído: o mundo imaterial verdadeiramente bom, belo e verdadeiro. Pelo menos esse é o Sócrates de Platão. Suponho que se vivesse hoje frequentaria igrejas, mas só depois que todos saíssem do culto ou da missa...
6. Nas tintas de Xenofonte, Sócrates é pintado com cores morais, formando um quadro onde o que se sobressai são as virtudes da justiça, da piedade, da prudência e sabedoria. Sócrates, nos diz Xenofonte, era um homem sem excessos e sem maldade. Ele foi injustamente acusado e condenado pelos atenienses que só devem ter feito por ignorância, pois ele não representava nenhum perigo, pelo contrário, representava a elevação moral de um ser guiado pela consciência interior que discernia o bem do mal, praticando o bem. Se vivesse hoje, no Brasil, certamente seria julgado e condenado na Lava Jato!
7. Aristóteles interpretou Sócrates segundo a sua própria filosofia e disse que Sócrates foi o inventor do conceito, da definição das coisas, pois andava indagando “o que” das coisas, o que é a virtude, o que é a justiça, o que é a amizade, o que é o amor? Se vivesse hoje quebraria a cabeça tentando encontrar explicações das coisas, do golpe, da apatia das ruas contra os assaltantes que tomaram o poder para entregarem as riquezas nacionais aos gringos. Talvez ele mudasse a pergunta e ao invés de perguntar “o que” é a coisa, perguntaria “por que” da coisa mesmo...
8. O que parece unânime é o seu jeito irônico de fazer filosofia pelo diálogo ou, mais tecnicamente falando, pela dialética. A ironia é o primeiro momento do método “maiêutico’ e é o momento da consciência da ignorância para poder se abrir à verdade. A maiêutica era o caminho de fazer o interlocutor “gerar” as ideias que estavam em si e que, Sócrates, o mestre, somente fazia a função de parteiro, tal sua mãe que era parteira e ajudava as mulheres de Atenas a dar à luz. Para Sócrates a luz é a verdade que, às vezes, não se encontra nas tradições e os hábitos, buscada e amada, como horizonte último de todo diálogo que se pretende filosófico. Se Sócrates vivesse hoje morreria de tédio com os fakes news que substitui o ‘amor ao saber’ pelo amor ao engano.
9. Sócrates, diz a tradição, foi o pai criador da filosofia por ter se distinguido dos Sofistas, que eram sábios e professores ambulantes, iguais a Sócrates, mas diferentemente deste não acreditam na verdade e não nutriam amor ao saber, mas apenas amor ao dinheiro e amor à retórica como arte de bem argumentar em vista da desconstrução do argumento do outro para vencer debates na vida pública e na vida forense. Se Sócrates vivesse hoje, no Brasil, colocaria o dedo no nariz de alguns operadores da justiça que de “interpretação em interpretação” fazem prevalecer a sua convicção seletiva contra a verdade das coisas...
10. Dois ditos sintetizam Sócrates: “só sei que nada sei” e “conheça-te a ti mesmo”. O primeiro é um paradoxo, ou seria uma ironia? Ou seria ambos? Penso que são ambos, paradoxo e ironia. O “conheça-te a ti mesmo” não é propriamente de Sócrates, pois estava estampado no Portal do templo de Apolo em Delfos, para todo grego ver. Mas, Sócrates, transforma essa divisa na sua mais alta filosofia da consciência e da autoconsciência. Ele é o inventor da “psique” e dizia que uma voz interior, um “demônio”, a voz da consciência, diríamos hoje, era o seu guia espiritual e moral que lhe indicava o que não deveria fazer.  Se vivesse hoje, Sócrates viveria atormentado pela facilidade de as pessoas optarem pelo mal, desviando-se do bem.
Sócrates foi acusado de perverter a juventude, desobedecer às leis do Estado e de introduzir novos deuses entre os atenienses. Foi obrigado a tomar Cicuta, um veneno mortal, pois os poderes do mundo não convivem bem com o pensamento livre e com quem não se submete à lógica da obediência cega. Ele poderia ter fugido, se livrado da morte, mas foi fiel a si e não temeu quem só pode matar o corpo, mas não pode matar o espírito e uma ideia, que vive para sempre...

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